Cidades e soluções
Nas típicas
cidades americanas, onde a maioria das pessoas, além de possuir seus próprios
carros, sofre da irresistível tentação de dirigi-los todo o tempo, se você
quiser fazê-las caminhar será preciso, antes de qualquer coisa, convencê-las de
que andar a pé é tão bom ou melhor que dirigir. Significa, sendo mais claro, que
você precisa oferecer a elas, simultaneamente, quatro bons argumentos para isso:
(1) há uma razão adequada para caminhar, (2) caminhar é seguro e te faz se
sentir em segurança, (3) caminhar é confortável e (4) caminhar é interessante.
(Jeff Speck, urbanista)
Nada impacta mais
o sistema de transporte público coletivo que a distribuição caótica e sem
qualquer planejamento das cidades. A má distribuição das habitações pelo tecido
urbano, que empurra as populações de menor poder aquisitivo para cada vez mais
longe dos locais de emprego é um dos exemplos cruéis e emblemáticos das
consequências produzidas por essa anarquia. Obrigados a percorrer longos trechos
para alcançar não apenas o trabalho, como muitos dos serviços públicos
essenciais, como saúde e educação, as classes de menor renda sofrem uma
penalização adicional: menos tempo com a família, menor proteção social, maior
desgaste físico e mental, situações que tornam a vida nas cidades um tormento
crescente.
A produção de
bairros-dormitórios em formato de guetos é o retrato nu e cru de um "benefício"
produzido por governos sob a única interpretação de que se atua para diminuir o
déficit habitacional. Não bastasse isso, a má qualidade das unidades produzidas
pelo principal programa governamental, "Minha Casa, Minha Vida" (voltado a
famílias que ganham até 1.800 reais), chega a ser uma espécie de castigo
adicional às populações de menor renda nas metrópoles: perto de 50% das unidades
produzidas entre 2011 e 2014 apresentaram problemas construtivos; 10% com falhas
graves, que comprometem as condições de uso e segurança (matéria do "Estadão"). Uma verdade inconveniente, como lembra a urbanista Raquel Rolnik: "o Estado destruiu
qualquer política de moradia que não fosse o fomento à compra da casa própria".
Política de moradia entenda-se como políticas urbanas de inclusão na cidade, e
não o oposto.
Dizia-se num
passado não muito distante que "quem casa, quer casa". Este e outros provérbios
prevaleceram por muitos anos no imaginário popular, nos tempos em que o fenômeno
da urbanização ainda não era o gigantesco problema que temos hoje. Nos anos 80
um entusiasmado governador, ao entregar as chaves de uma casa popular a uma
família de baixa renda, disse que essa era a maior conquista que se podia ter:
"agora vocês poderão dizer que da porta para dentro tudo é de vocês, do chão ao
teto, de parede a parede". Olhando ao redor podia-se ver que ali havia apenas
casas, muitas casas, distantes de creches, unidades de saúde, escolas de ensino
fundamental. Como lembra Rolnik, os mais pobres passaram a ter acesso a
empréstimos bancários que garantiam a entrada deles no mercado imobiliário, mas
ao mesmo tempo sofreram sua quase expulsão da vida na cidade.
O arquiteto
Washington Fajardo já alertava, em julho de 2017, em artigo no jornal O Globo, que o programa "Minha
Casa Minha Vida" era "um programa de estímulo econômico, com foco em médias e
pequenas empreiteiras, que têm como um produto a moradia; em geral, longe dos
centros urbanos, onde a terra é barata. É realizado sem nenhuma qualidade
espacial, mantendo longas jornadas de viagem até o trabalho, replicando a
exclusão por gerações".
Com a crise
econômica recente um novo problema se juntou aos anteriores: a inadimplência nos
programas habitacionais, que hoje atinge a marca de 28% em cidades como Rio, São
Paulo, BH, Salvador, Fortaleza e Baixada Santista.
Dentre os custos
que impactam e colaboram fortemente para a inadimplência estão os custos dos
transportes, "devido à localização periférica e precariedade da infraestrutura
urbana, reduzindo a renda disponível para pagar pela habitação", segundo informa
Claudia Magalhães Eloy, doutora em urbanismo, em artigo no Valor Econômico.
Ana lembra que a
definição do valor das prestações "ignora quesitos importantes - renda per
capita, vulnerabilidade social e custo de vida da região - produzindo
ineficiências com a cobrança de prestações aquém do que a família pode realmente
pagar, desperdiçando escassos recursos públicos, e injustiças pela cobrança de
valores que outras famílias, de fato, não dispõem".
O descompasso
existente entre os entes federativos coloca sempre o município na ponta da
corda. Vítima das principais consequências de políticas macroeconômicas ditadas
pela União, as cidades têm sofrido continuadamente graças aos equívocos
cometidos por muitos dos programas federais e estaduais. Como exemplo recente
tem-se as políticas de incentivo à compra de automóveis, que entupiram ruas e
avenidas trazendo em seu bojo resultados perigosos não somente para a saúde
pública e a questão ambiental, como para a redução dos já exíguos espaços
públicos, transformando-os em meros espaços de "passagem". Os programas
habitacionais produziram estrago similar, ao pressionar os custos dos
transportes e tornar a gestão das cidades cada vez mais improváveis e caras.
Como lembra Fajardo, "será com o acesso à cidade e seus benefícios, acesso à
diversidade, ao capital humano, ao conhecimento, à cultura e aos serviços
públicos, ao atrito que forja a urbanidade, que poderemos romper o círculo que
gera e regenera o abismo social".
Se os prefeitos
não começarem a questionar as políticas federais, invertendo o jogo político, as
cidades se tornarão cada vez mais ingovernáveis. E com a crescente urbanização
não haverá possibilidade de retorno: o inchaço produzirá despesas crescentes,
impactando os cofres municipais a tal ponto que não restará verba suficiente nem
mesmo para as mínimas ações de zeladoria. Atrair o poder privado, com ações
criativas e momentâneas, pode ser um paliativo, mas jamais será uma solução,
antes pelo contrário. A corda continuará a ser esticada, e o cidadão continuará
a ser tratado como vítima de um problema do qual desconhece as
origens.
Como ações
mitigadoras e ao mesmo tempo promotoras da participação do cidadão na
recuperação de sua cidade há muito que fazer. Recuperar espaços públicos
dedicando-os à convivência urbana; investir em modos não poluentes e não
motorizados, criando redes de transporte permeáveis; focar prioritariamente nas
populações mais vulneráveis (uma cidade boa para portadores de deficiências e
crianças será sempre uma cidade mais humana), estes são apenas alguns exemplos
de ações que exigem dos gestores não apenas atitude, como diálogo permanente com
a sociedade. Um prefeito ousado pode começar olhando para as escolas e seus
bairros. E irá perceber uma realidade reveladora: quantas de suas crianças já
foram a pé para a escola? Quantas possuem bicicleta? As respostas a essas
perguntas simples irão revelar uma cidade doente, que só irá se recuperar se a
maioria das pessoas for envolvida nas soluções, num movimento democrático de
baixo para cima, e não autocrático e paternalista de cima para
baixo.
As mudanças
políticas, invertendo as prioridades e focando nos municípios, estas virão como
decorrência natural, fruto da vontade coletiva por uma cidade melhor e para
todos. No entanto, é preciso começar o quanto
antes.
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