Recentemente foi anunciado pelo governo do estado do RJ o
leilão como sucata de 97 trens unidades elétricos - TUE, antes operados pela
supervia. Esses carros serviram por muitos anos aos passageiros dos trens de
subúrbio do Rio em momentos distintos operados por empresas distintas: Central
do Brasil, CBTU, Flumitrens e Supervia. Um dos motivos de leilão é que, além da
obsolescência do material rodante, os carros estão ocupando grandes espaços nos
depósitos da Supervia em São Diogo e Deodoro, que precisam ser liberados para
receber novos trens.
Tenho recebido dezenas de e-mails de pessoas, e entidades
preservacionistas, indignadas com o leilão de trens da Supervia, autorizado
pelo Estado, indignados porque esse material foi considerado, erroneamente,
como inservível e será vendido a preço de sucata de ferro.
Essa situação nos remete a um problema que tira o sono das
ferrovias e de entidades de preservação ferroviária em geral: quando e como
realizar a substituição do material rodante?
Material descartado
pela FCA e pelo governo do estado do RJ oriundo do pátio de Praia Formosa,
atualmente aguardando destinação pelo DNIT. Foto de Luiz Felipe Lopes Dias.
Há uma corrente de pensamento forte especialmente no Brasil
de que "isso é sucata mesmo, não serve mais para nada, trem com 30 anos é
lixo mesmo", acredito ser errônea essa posição dados os exemplos no Brasil
de importação bem sucedida de locomotivas usadas pelas concessionárias dede carga
e a grande indústria de remanufaturamento de material rodante existente nos
EUA, onde uma vez aposentado nas ferrovias classe I o material rodante tende a
ser recondicionado ou modernizado para ser posto em tráfego novamente ou
desmontado criteriosamente para a obtenção de peças de reposição a baixo custo,
vide o exemplo das várias indústrias especializadas neste tipo de serviço
inclusive a National Railway Equipment – NRE que forneceu locomotivas
modernizadas SD40-3MP para a MRS e fabrica locomotivas modelos GENSET feitas a
partir de máquinas sucateadas, a MRS, aliás, que tem em sua frota várias
máquinas modelo C30-7MP feitas a partir de locomotivas U23C e C36ME a partir de
U30C’s. Mesmo na Europa temos exemplos de trens como os carros de passageiros usados
vindos da França para Portugal e dos TGV de serviço postal convertidos a partir
de TGVs para passageiros. A NRE que além de reformar material também realiza
serviços de desmontagem para a obtenção de peças
Voltando a supervia apesar do anseio do passageiro por trens
novo surgem algumas perguntas: será que a troca total da frota é realmente
necessária? Somos um país rico o suficiente para isso? Não estamos recessão?
Não faltam trens na Supervia, por exemplo? Então, porque vender esses carros?
Em geral o material ferroviário tem durabilidade secular e
podem ter serventia mais nobre antes de serem irremediavelmente picotas pelo
maçarico.
No caso específico de TUEs a obsolescência é definida mais
pelas falhas eletromecânicas dos sistemas de tração do que pelas falhas
puramente mecânicas dos demais sistemas do trem, pois as primeiras tendem a ser
muito mais frequentes que as últimas.
Normalmente a quantidade de falhas tende a ser diretamente
proporcional a idade do equipamento aumentando conforme o envelhecimento, porém
outros fatores como a adequada manutenção e a robustez/adequação do equipamento
ao serviço refletem nessa relação, vejam o exemplo abaixo:
Extraído do relatório de atividades 2013-07-julho AGETRANSP
As tabelas acima mostram a disponibilidade dos trens da
supervia, os trens das séries 400 e 1000 são os mais antigos da frota (décadas
de 60 e 50 respectivamente), no entanto apresentam taxas de falha
substancialmente menores que a dos trens das séries 500, 700, 800, 900
(adquiridos entre 1977 e 1982) 9000 e 8000 (1996), os trens da série 8000
apesar de relativamente novos (1996) são os que possuem pior desempenho. Os trens da
series 2000 e 3000, novos, apresentam disponibilidade muito maior que todo o
restante da frota.
O fenômeno acima pode ser explicado pelas características
técnicas do equipamento os trens da série 400 e 1000 possuem sistemas de
conversão de tensões CC-CA baseados em ineficientes, porém robustos
motores-alternadores, os trens mais modernos utilizam sistemas de
semicondutores muito menos resistentes às práticas de manutenção e operação dos
subúrbios do RJ.
Também podemos notar que há uma oscilação no MKBF dos trens
que reflete a influência da prática de manutenção sobre o equipamento, e daí
podemos inferir que apesar de superior ao restante da frota o MKBF dos trens
novos logo deve começar a abaixar e atingir o mesmo patamar dos demais trens,
podemos claro imaginar a troca contínua do material rodante não parece ser uma
resposta economicamente efetiva.
Dessa forma parece que realmente se deve aposentar toda a
frota antiga, porém deve-se observar que a experiência internacional mostra que
a vida útil de TUEs sem grandes reformas é de no mínimo 30 anos chegando
facilmente a casa de 50, vide a tabela abaixo com alguns dos TUEs no nordeste
dos EUA:
Modelo
|
Material da caixa
|
Introdução/Retirada
|
Vida útil em anos
|
SLI
|
Inox
|
1958-1990
|
32
|
SLII
|
Inox
|
1963-2012
|
49
|
SLIII
|
Inox
|
1967-2012
|
35
|
SLIV
|
Inox
|
1973
|
42+
|
SLV
|
Inox
|
2009
|
6+
|
Highliner
|
Aço carbono
|
1971
|
44+
|
Highliner
|
Inox
|
2005
|
10+
|
Lackawanna MU
|
Aço carbono
|
1930-1984
|
54
|
Pioneer III
|
Inox
|
1958–1990
|
32
|
M1
|
Inox
|
1967-2007
|
40
|
M1A
|
Inox
|
1971-2009
|
38
|
M3/M3A
|
Inox
|
1984
|
31+
|
Arrow III
|
Inox
|
1977
|
38+
|
MP54
|
Aço carbono
|
1908-1981
|
73
|
Veja exemplos como os Bondes de centenas de cidades mundo
afora, incluindo o Rio de Janeiro. Os da cidade de Los Angeles, por exemplo,
trabalharam por décadas em Lisboa e ao serem substituídos por mais novos foram
comprados, reformados e hoje continuam funcionando, prestando serviços e
encantando quem visita aquela cidade.
E hoje em Lisboa, diversas gerações de Bondes (que agora se
chama de VLT) convivem. Não destruíram os antigos. Acrescentaram os novos.
Os carros de fabricação da ACF e Toshiba que rodam hoje no
subúrbio de Salvador-BA são respeitáveis sessentões, alguns dos quais rodaram
antes no interior de São Paulo e alguns dos quais atenderam antes Belo
Horizonte e cidades vizinhas.
TUE Toshiba reformado. Foto site VFCO
No caso da supervia as novas composições compradas não
repõem a totalidade de carros retirados de circulação. Ainda faltam trens em
circulação para atender a demanda tanto que várias unidades se das séries 500,
700 e 900 foram climatizadas e serão mantidas em circulação mesmo com a atual
revisão do programa de modernização da supervia o total de 230 trens ainda é
inferior aos 250 operados pela CBTU na década de 80.
Em maio o estado anunciou a revisão do programa de
modernização dos trens e alterou a meta apresentada na tabela abaixo reduzindo
o total de trens de 231 para 201, em compensação pretende substituir 47 dos 91
trens reformados por trens novos (25 já encomendados).
O custo de aquisição de um carro de TUE novo é de R$ 1,75 a 3,5 milhões de reais enquanto o custo de reforma é de cerca de R$ 111 mil a 220mil. Ou seja, com o dinheiro que o estado do RJ pretende gastar com a compra de 22 trens chineses seria possível reformar toda a frota morta da supervia.
Portanto julgo que seria bastante conveniente que dos carros
a serem leiloados fossem retidos para reforma e climatização os trens das
séries 500,700, 900/9000 o que permite uma sobrevida de cerca de mais 15 anos
ao material e o atendimento a meta inicial de 231 trens em circulação.
Mesmo levando em consideração o levantamento da ANTPTrilhos onde a frota consome em média 30% mais energia elétrica que os modelos novos ou modernizados e que a energia elétrica significa 25% dos custos totais da SuperVia, e 16% dos gastos mensais da CPTM, a economia sobre os juros do capital investido nos trens novos e a sua respectiva depreciação parecem absorver a vantagem sobre a diminuição do custo operacional e de manutenção.
Os trens das séries 400 e 1000 por serem de aço carbono (questão importante numa região litorânea como o Rio de Janeiro), não possuírem um projeto de climatização e possuírem um padrão de três carros ao invés de quatro ou oito dos TUES mais novos devem realmente ser baixados.
Ainda que se decida pela alienação da frota o puro e simples
leilão de sucata não parece ser a destinação correta do material, o dinheiro
arrecadado com a venda como sucata é irrisório comparado ao custo a ser
desembolsados com compra de material rodante mesmo os mais modestos. Na
realidade, sem erro algum na comparação, se rasgará dinheiro ao tratar este
material como uma sucata que não é. Na verdade, um lote de 108 carros
deteriorados foi objeto de ação judicial movida pelo governo do Estado contra a
Supervia em 2007, o que resultou no reconhecimento, por parte da
concessionária, de um débito de 96 milhões de reais, em 2005 o leilão de 83
carros gerou 60,3 milhões de reais.
Segundo o Governo do Estado, os recursos arrecadados deverão
ser reaplicados em melhorias no sistema de trilhos do Estado, o que será muito
pouco vis a vis às demandas de investimentos bilionários que o modal
ferroviário requer. O que será arrecadado nos leilões será muito pouco, pois
cada carro pesa entre 15 e 20 toneladas e será vendido a preço de sucata de
ferro (R$ 0,70/kg) pretendendo arrecadar R$ 1,5 milhão o que não pagaria nem
mesmo um único carro novo de TUE.
Cobre Mel R$
13,00 / kg
Cobre Misto R$ 12,00 / kg
Alumínio Bloco (Limpo) R$ 2,30 / kg
Antimônio (Zamak) R$ 1,50 / kg
Aço Inox R$ 2,00 / kg
Alumínio Chaparia R$ 2,90 / kg
Bronze R$
7,50 / kg
Ferro R$ 0,20 / kg
Chumbo R$
1,80 / kg
Bateria (Caminhão) R$ 45,00 / unidade
Aço R$
7,50/Kg
Observando-se a tabela acima percebemos que o valor de
leilão está subfaturado apenas o peso destes vagões em aço dá mais do que a
receita anunciada pelo estado, isto se desprezando o fato de que estes vagões
em sua maioria são feitos de aço inox e não ferro, o aço inoxidável possui
valor de revenda muito maior, fora as toneladas de cobre e outros metais mais
valiosos contidas em grande quantidade no sistema elétrico destes trens.
Fora peças que podem e são reaproveitadas em outros trens e
ferrovias, os motores de tração lâmpadas, sistemas de freios, ventiladores,
engates e vários outros componentes destes trens são compatíveis ou exatamente
os mesmos dos trens de Salvador (séries 1000 e 400), Recife (série 800/8000), Belo
Horizonte (900/9000), Porto Alegre (500, 700).
Além disso as instalações de manutenção e construção
ferroviária do estado do RJ encontram-se operando bem abaixo da sua capacidade
máxima, a desmontagem criteriosa ao invés do simples corte seria fator de
geração de demanda emprego e renda para a indústria.
Mesmo a justificativa da necessidade de abertura de espaço
nos pátios para recebimento de material novo não cabe, pois a supervia dispões
de várias áreas grandes sem utilização que podem funcionar como depósito até
uma destinação mais adequada aos carros a serem baixados:
ÍNDICE DE TERRENOS DISPONÍVEIS
Arquias Cordeiro Área:
9.314 m²
Cosmos Área:
9.115 m
Santa Cruz Área:
aprox. 126.115,00 m²
Guapimirim Área:
aprox. 23.000 m²
Paciência Área:
aprox.3.000 m²
Imbariê Área:
aprox.6.000 m²
Vila Inhomirim Área:
aprox. 2.000 m²
Engenheiro Pedreira Área:
aprox. 1.400 m²
Japeri Área:
aprox. 12.800 m²
Rua Ceará Área:
aprox. 17.600,00 m²
Ótimo que carros mais modernos circulem na cidade do Rio de
Janeiro, mas os carros no pátio da Supervia podem circular e atender dezenas de
cidades no próprio Estado do Rio e no Brasil, onde não existe serviço ferroviário de passageiros. Vide o exemplo
dos trens metroliner nos EUA hoje convertidos para carros reboque em tráfego na
AMTRAK, a não existência de redes elétricas não significa
absolutamente nada de empecilho para a utilização de carros de TUEs. Eles podem
ser utilizados REBOCADOS, SEM ALTERAR SUA BITOLA (1,6 m) podemos imaginar seu
uso em trechos como: Japeri – Barra do Piraí, Três Rios – Paraíba do Sul, Resende-Volta
Redonda, Miguel Pereira – Paraíba do Sul, Itacuruçá – Mangaratiba, Belo
Horizonte – Sete Lagoas (MG), e a expansão do serviço de trens urbanos e trens
regionais, há no contrato de concessão da supervia a previsão de extensão dos
serviços de trens até Itaguaí em tração a diesel de bitola larga, o material
rodante ideal para tal é justamente o que vai ser leiloado. Também existem as
demandas de trens regionais entre o Rio de Janeiro e Campos, demandas
apresentadas dentro das audiências públicas da implantação da EF118.ALTERANDO A SUA BITOLA (para 1,0 m) seus usos explodem tantos
são os trechos. Destaco a modernização das composições que atendem aos ramais
de Guapimirim e Vila Inhomirim, os trens a serem alienados por serem de aço
inox resistem melhor ao ambiente abrasivo da região do fundo da Baía de
Guanabara melhor do que os trens hoje operados pela supervia, inclusive os
trens a serem alienados são mais novos que as composições em usos nestes
ramais, embora estes ramais sejam de bitola métrica no passado durante a
administração da CBTU houve a transferência de trens elétricos da bitola larga
para servirem como carros reboque diesel na bitola métrica.
TUE série 100, em
Gramacho (Duque de Caxias-RJ) em 1986 após ser aposentado dos serviços de
bitola larga foi transferido para a métrica aonde chegou a ser operado pela
supervia no ramal de Vila Inhomirim aos 75 anos de idade. Foto Hugo Caramuru.
Também a possibilidade de adaptação dos carros para serviços
de manutenção, a maior parte dos trens de manutenção de rede aérea da Supervia
hoje são antigos trens unidade de aço carbono da série 100 convertidos para a manutenção de rede aérea pela CBTU e possuem 78 anos de idade! A supervia recebeu cerca de 10 trens a época
da concessão. Vários destes carros podem substituir estes trens, a
própria Supervia já fez duas substituições destas (trens TS1 e TS2). Além da Supervia e do metrô rio as futuras operadoras das linhas três e quatro do metrô
também precisaram de trens de manutenção que podem perfeitamente ser baseados
nos carros de aço baixados.
Trem com carros da série 100 operando na supervia, o segundo e o terceiro carro são ttens da série 100 modernizados pela RFFSA/DES depois convertidos em trens de manutenção de redeaérea pela CBTU.
TUE série 100 da EFCB adaptado como trem de serviço na MRS
TS1 da supervia no ramal de Paracambi
Outros usos alternativos, como carros biblioteca, postos de
saúde, oficinas, e até mesmo substituindo os tão mal falados contêiner
utilizados pelo DETRAN RJ e pela Polícia Militar nas UPPs, em face de enorme
durabilidade, solidez e resistência ao tempo das suas caixas de aço, permitindo
que durem ainda mais de meio século, mesmo se exposta ao tempo.
Carro da série 500 da
supervia em uso pela Faetec em Nilópolis-RJ, foto de Antônio Pastori.
Por fim também se pode pensar no uso como laboratório para
as aulas práticas da escola técnica estadual Silva Freire, instituição carioca
centenária de capacitação em ferrovia, o estado do RJ é um dos poucos no país
que possuem ensino público especializado na área ferroviária, mas que carece de
meios para aulas práticas antes de entregar o aluno ao mercado.
Enfim não se trata de saudosismo, dados as questões
econômicas e sociais expostas anteriormente seria muito importante que a
SETRANS reservasse alguns desses carros para uso mais nobre, permitindo a
inspeção do material por possíveis interessados. Todas as opções acima
apresentadas são realizadas por diversas ferrovias tanto no Brasil quanto no
exterior, inclusive referências como o metrô de Nova Iorque e as operadoras de
trens regionais dos EUA, e dariam ao estado um retorno muito maior no sentido
da economia com a aquisição de material rodante para as demandas do transporte
ferroviário do estado do que o valor gerado pela sua venda como sucata.
Reaproveitamento de trens elétricos em tração diesel
Trens série 800/8000
Trens série 900
Transferência do trem da série 100 para bitola métrica:
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